Brasil, um país pacato*
Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados. Foto: Ed. Guimarães
Quem fala com brasileiros, só ouve lamentações quanto à insegurança em que vivem. Quem assiste aos telejornais, só toma conhecimento de desgraças. São pessoas assassinadas barbaramente em assaltos de rua, mesmo quando oferecem carro, carteira e nenhuma resistência; é aquele infeliz que entra num hospital para curar uma ferida no braço e sai dele com a perna amputada ou diretamente para o cemitério com uma injeção de líquido fatal; é a criança atingida na cabeça por uma bala perdida; é essa ou outra criança que espera oito horas nas urgências do hospital e acaba por morrer sem assistência; é mais um desafortunado que espera vinte e quatro horas no hospital, de peito aberto, após uma cirurgia ao coração, porque não há fio de aço para costurar a ferida; é a mulher espancada até à morte pelo marido ou vice-versa; são os corruptos políticos que metem ao bolso os dinheiros públicos destinados aos serviços de saúde e educação; são os telhados das escolas que desabam sobre as crianças atentas à aula; são as crianças que espancam o professor; são as corridas de carro mais espetaculares que as dos filmes, em avenidas de trânsito cerrado, quando a polícia persegue um grupo de criminosos; é o pior ainda que não me ocorre e a vós passe pela imaginação.
Face a esta onda de violência, e sobretudo tratando-se, em muitos casos, de crimes cometidos gratuitamente e com a maior frieza, o site Terra até elaborou uma relação de mais de 30 crimes que abalaram os brasileiros desde 1990
O Brasil tem uma população de cerca de 197 milhões de habitantes, distribuídos por 26 estados e um distrito federal, numa superfície de 8.515.767,049 kms2 (a área de Portugal é de 92.090 kms2). Não vou dividir 30, nem 300, nem mesmo 300 mil crimes, por 1 ano, 27 estados e 197 milhões de habitantes, apenas perguntar, dirigindo-me aos mass media, "a mídia" na versão brasileira: e quantos espetáculos de cinema, circo, teatro, bailado, quantos concertos, exibidos no Brasil em 2012, todos dignos de notícia, passaram sem uma imagem, sem uma linha de reconhecimento, nesses mesmos meios de comunicação? Quantas procissões, quantas missas cantadas, quantos bailes, quantas paradas, quantos casamentos, quantos batizados, tudo acontecimentos felizes, por isso dignos de registo, ocorreram em 2012, no maior silêncio dessa mídia? Corre pela Internet uma anedota que regista a quantidade de pessoas nas cadeias, que transcrevo por acreditar na verdade dos números que apresenta:
Um contribuinte teve sua declaração rejeitada pela Receita Federal porque, aparentemente, respondeu a uma das questões incorretamente. Em resposta à pergunta “Você tem dependentes?” o homem escreveu: “40.000 imigrantes ilegais, 10.000 viciados, 150.000 servidores públicos, 150.000 criminosos em nossas prisões, além de uma porrada de políticos em Brasília e nos municípios.”. A Receita afirmou que o preenchimento que ele deu foi inaceitável. Resposta do homem à Receita: “De quem foi que eu me esqueci?”.
Sem anedota, houve tumultos recentes no estado de Santa Catarina, com autocarros incendiados e inúmeros outros atos de vandalismo, de que tinha resultado, à data em que deles fui informada, um morto e vários feridos. Claro que estes acontecimentos correram pelos meios de comunicação de meio mundo, chegaram-me ao conhecimento via Internet, mas continua a ser verdade o que defendo: de um lado a mídia é quase integralmente catastrófica e, de outro, o Brasil é um país pacato. O Brasil não é só crime, praia, calor, asfalto ladeado por arranha-céus.
O que acima declaro vale também para Portugal, onde só a crise é falada, mais o futebol, evidentemente. Aliás os nossos telejornais dividem-se em três blocos: notícias catastróficas do país, notícias mais ou menos catastróficas do estrangeiro, e notícias do futebol. Hoje, por exemplo, muito tempo de antena tem sido concedido a esse raríssimo e extraordinário acontecimento que é o aniversário de um futebolista. Os meus parabéns igualmente, Ronaldo! Vivemos uma cultura da tragédia que dá do mundo uma imagem tenebrosa, não porque o mundo tenha só essa face, e ela seja a dominante, sim porque os meios de comunicação de massa, das duas faces e mais da moeda, só oferecem a que julgam garantir-lhes maior audiência, donde mais contributos da publicidade, logo mais dinheiro. A dor rende, a alegria, só a do futebol.
Eu conheço outro Brasil, o Brasil pacato, e é desse que vou falar e mostrar imagens, com a experiência das diversas viagens que nele tenho empreendido, desde Recife, no norte, a Porto Alegre, no sul, sozinha ou com a única companhia de Ana Luísa Janeira. Sem pacotes turísticos, sem guias, sem itinerários rígidos. Duas senhoras ou só uma, indefesas, a viajarem quase sempre de autocarro, com o povão, nesse país cuja imagem interna é a de um bando de criminosos à coca em todas as esquinas.
O Brasil que me encanta não é o da modernidade, se bem que admire as grandes cidades, com os seus bairros erguidos nas torres dos arranha-céus, em cada um dos quais cabe mais do que a população da minha terra, Britiande, como é o caso de Curitiba, no Paraná, para mencionar não a maior, antes aquela onde passo a maior parte do tempo. E posso começar pela casa onde me proporcionam familiar guarida, dita «o castelo», isolada no interior da floresta. Não há armas na casa a não ser as facas de cozinha, espadas e punhais ritualísticos, de eficácia duvidosa em caso de defesa num assalto. Cães demasiado mansos guardam o castelo; como ladram a qualquer borboleta, de pouco servem para alerta de perigo. Os moradores, pacatos, nunca denunciaram temor, a despeito do isolamento. Nem eu alguma vez senti medo, apesar de já ter acontecido ficar sozinha em casa. O que existe é a lamentação contínua do proprietário pela quantidade de crimes que ocorrem no Brasil. Tendo-lhe comunicado o teor deste artigo, e que o mencionaria, ele contrariou-me as ideias, como era de esperar, explicando que o castelo nunca foi assaltado porque ele é detective e ex-delegado da Polícia. Pois sim, caro Walmir Battu.
Em São Paulo costumo ficar em casa de amigos que não se trancam dentro de casa. Vivem num alto prédio com segurança à entrada, no centro da cidade. Se um estranho soubesse disto, bastava-lhe rodar o trinco para entrar. Também esses proprietários do apartamento vivem no terror constante de ser assaltados, e já foram, mas não fecham a porta à chave. Talvez prefiram com isso minorar os estragos, na eventualidade de arrombamento.
Mas o Brasil que me fascina é outro, não só por ser pacato, como português. O Brasil que me encanta é o das cidadezinhas sossegadas à beira de lagunas, rios e mangais, com o centro histórico a ressumar arquitectura portuguesa, como Olinda, Laguna, Lapa, Morretes, Antonina ou Paranaguá. São cidades-museu como Ouro Preto, Diamantina, Tiradentes ou Mariana, no Estado de Minas Gerais, em que até a gastronomia, famosa pelos torresmos, recorda o nosso país. Tal como recordam a nossa terra os bordados e as cortinas de renda, as calçadas empedradas, as madeiras grossas das portas e das escadas, as janelas de guilhotina. Em Ouro Preto, com uma das universidades mais carismáticas, a Escola de Minas, sobrevive o hábito coimbrão das repúblicas e das praxes aos caloiros. Já Belo Horizonte, a capital, se demarca destas caracterizações, para ascender às alturas dos prédios modernos, em geral, em todo o Brasil, de bela arquitetura. Qualquer central de ônibus de cidadezinha mediana, por exemplo, exibe alguma graça arquitetónica, a cujos calcanhares não chegam as do Porto ou de Lisboa.
Para voltar a Belo Horizonte, o que mais me impressionou na cidade, de que deixo duas fotos que devem ser imaginariamente coladas uma à outra pelos leitores, foi o facto de cidade rica estar mesmo ao lado da favela. Duas faces do Brasil separadas apenas por um vale, a riqueza e a miséria, um morro recamado de casitas encaixadas umas nas outras, quase sem ruas (uma apenas parece existir, por onde via circular autocarros), o outro eriçado de arranhacéus bem espaçados nas largas ruas.
Os brasileiros são afáveis, carinhosos. Aproximam-se para fumar connosco quando, num jardim, nos sentamos para saborear um cigarro. Metem conversa, querem saber das nossas terras, ao descobrirem que somos portugueses, porque em muitas famílas brasileiras, desde as pobres às abastadas, há sempre ascendentes lusos. Na maior parte, porém, ignoram de que parte de Portugal eram oriundos os antepassados. É o seu interesse nas raízes que desencadeou a pesquisa da árvore genealógica. Ora da minha parte o interesse vem de verificar que o Portugal antigo, que vamos perdendo por cá, é preservado com o maior carinho no Brasil.
Por falar em jardins, espaços edénicos e por isso pacatos, há-os belíssimos, dou apenas três exemplos curiosos: Inhotim, uma enorme propriedade que, além do elemento vegetal, inclui vários pavilhões de arte, eles mesmos obras de arte da arquitetura contemporânea, e o recente Horto Botânico de Ouro Preto, obra do pensamento de Anna Parsons, em Minas Gerais. E o «Sítio do Picapau Amarelo», em Taubaté, no Estado de São Paulo, em que há actividade diária das personagens, convidando os visitantes a participar em leituras encenadas da obra de Monteiro Lobato.
Quase todo o Brasil sossega sob uma colcha de floresta, a Amazónia, de que só conheço uma fímbria peruana, e a Mata Atlântica, já muito familiar. Isto a despeito da desmatação constante.
O que me encanta patenteia-se mais nas imagens do que nas palavras. Como estas já vão longas, remato com o que me chega a incomodar, no Brasil: a proliferação de igrejas não-católicas, patente nas prédicas televisivas, à noite, e na quantidade de igrejas. Na televisão, fazem-se todas as noites mais milagres do que em Fátima. Para cada igreja católica, nas cidadezinhas por onde andei este ano, no Paraná, via quatro e cinco igrejas baptistas, evangélicas, do Reino de Deus e similares. Por vezes, ao longo das estradas, quando seguia de autocarro, essas igrejas protestantes apareciam em lugares desertos, sem nenhuma povoação à vista. Livrarias evangélicas, também vi muitas.
Contaram-me que nas igrejas dos grandes centros urbanos, com capacidade para milhares de crentes, se recolhem esmolas com máquina de cartão de crédito. E que numa outra o padre se gabou de que acabaria a assembleia com verba suficiente para o autocarro cuja falta iria declarar na cerimónia. Acabou com ela, chegando a convencer os elementos mais abastados do auditório a emprestarem aos que não tinham, ali mesmo, na igreja. Não pedia cinco reais, pedia cinco mil ou mais. Dado o poder de convicção, e correlatas dimensões do auditório, não espanta que certos líderes religiosos estejam a receber passaporte diplomático.
Há quem lamente que o Brasil, nas sondagens mais recentes, já não seja um país de religião maioritariamente católica. Fui à missa duas vezes, ao domingo, e as igrejas estavam meio vazias. Já assisti a missas protestantes em imensos espaços fechados. Senti medo, não por causa das pessoas, sim da multidão. Mas realmente atrai o diálogo do líder religioso com o público, a emocionada participação deste, a presença da orquestra e as belas vozes dos cantores. Porém a imensa concentração de pessoas é algo alarmante.
Não é a desproporção entre protestantes e católicos que me incomoda, as pessoas são livres de rejeitar um credo e aceitar outro, ou outros, cumulativamente, como não é raro no Brasil. O que incomoda é a facilidade com que milhões de pessoas se deixam endoutrinar, em tantos casos por charlatães.
Casa dos Banhos, 6 de fevereiro de 2013
Venda de bacalhau no Mercadão, em São Paulo (Mercado Municipal Paulistano)
Instituto de Arte Contemporânea e Jardim Botânico de Inhotim (Minas Gerais)
A parte nobre de Belo Horizonte
A favela de BH, anexa à parte nobre
Morretes, na margem do rio Nhundiaquara, no Paraná
No «castelo», isolado na Mata Atlântica, a família goza pacatamente o seu chimarrão
Ouro Preto. Vê-se a Escola de Minas, em plano superior, à direita
Ouro Preto (Minas Gerais)
Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, com estátuas do Aleijadinho
Horto Botânico de Ouro Preto, ideado por Anna Parsons
República «Hospício Loucos por Saias», em Ouro Preto
Uma das ruas principais de Diamantina, em Minas Gerais
Paranaguá, zona antiga (Paraná)
As nossas rendas antigas, em Mariana
Mariana (Minas Gerais)
Tiradentes (Minas Gerais)
São João del Rey (Minas Gerais)
No Sítio do Picapau Amarelo, em Taubaté (Estado de São Paulo)
*Texto publicado igualmente na Revista Incomunidade, fevereiro de 2013
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.comPORTUGAL
estela@triplov.comPORTUGAL